Ações penais
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2021
26/04 - REsp 1.847.488-SP
O ajuizamento de duas ações penais referentes aos mesmos fatos, uma na Justiça Comum Estadual e outra na Justiça Eleitoral, viola a garantia contra a dupla incriminação. Informações do Inteiro Teor No caso, os mesmos fatos que levaram ao oferecimento da denúncia discutida também foram apreciados em ação de improbidade administrativa e ação penal na Justiça Eleitoral, sendo que ambas culminaram com a absolvição. Frisa-se que a sentença absolutória por ato improbidade não vincula o resultado do presente feito, porquanto proferida na esfera do direito administrativo sancionador que é independente da instância penal, embora seja possível, em tese, considerar como elementos de persuasão os argumentos nela lançados. No entanto, quanto à absolvição perante a Justiça Eleitoral, a questão adquire peculiaridades que reclamam tratamento diferenciado. Isso porque a sentença, não recorrida pelo MPE, foi proferida no exercício de verdadeira jurisdição criminal, de modo que o prosseguimento da ação penal da qual se originou este habeas corpus encontra óbice no princípio da vedação à dupla incriminação, também conhecido como double jeopardy clause ou (mais comumente no direito brasileiro) postulado do ne bis in idem, ou ainda da proibição da dupla persecução penal. Embora não tenha previsão expressa na Constituição Federal de 1988, a garantia do ne bis in idem é certamente um limite implícito ao poder estatal, derivada da própria coisa julgada (art. 5º, XXXVI, da Carta Magna) e decorrente de compromissos internacionais assumidos pelo Brasil (§ 2º do mesmo art. 5º). Isso porque a Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 8º, n. 4) e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (art. 14, n. 7), incorporados ao direito brasileiro com status supralegal pelos Decretos 678/1992 e 592/1992, respectivamente, tratam da vedação à dupla incriminação. Tendo o Ministério Público, instituição una (à luz do art. 127, § 1º, da CF/1988) ajuizado duas ações penais referentes aos mesmos fatos, uma na Justiça Comum Estadual e outra na Justiça Eleitoral, há violação à garantia contra a dupla incriminação. Por conseguinte, a independência de instâncias não permite, por si só, a continuidade da persecução penal na Justiça Estadual, haja vista que a decisão proferida na Justiça Especializada foi de natureza penal, e não cível. Tanto o processo resolvido na esfera eleitoral como o presente versam sobre crimes, e como tais se inserem na jurisdição criminal, una por natureza. O que diferencia as hipóteses de atuação da Justiça Comum Estadual e da Justiça Eleitoral, quando exercem jurisdição penal, é a sua competência; ambas, contudo, realizam julgamentos em cognição exauriente sobre a prática de condutas delitivas. Sendo distintas as imputações vertidas num e noutro processo, é certo que cada braço do Judiciário poderá julgá-las; inobstante, tratando-se de acusações idênticas, não é o argumento genérico de independência entre as instâncias que permitirá o prosseguimento da ação penal remanescente. Informações Adicionais Doutrina (1) “o princípio da dupla incriminação não era inteiramente desconhecido por gregos e romanos, embora o ambiente jurídico fosse bastante diferente. Este princípio encontrou expressão final no Digesto de Justiniano, como o preceito de que o governador não deverá permitir que a mesma pessoa seja acusada novamente por um crime do qual já foi absolvida” (SIGLER, JAY. A history of double jeopardy. The american journal of legal history, Oxford, v. 7, n. 4., 1963, p. 283, tradução direta). (2) Numa das melhores obras sobre o tema em nosso país, fala-se mesmo na velada presença da proibição da dupla persecução penal no Direito Brasileiro, uma vez que está ausente da Constituição de modo explícito (CRUZ, Rogerio Schietti Machado. A proibição de dupla persecução penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 105). (3) “sem proteção contra a dupla incriminação, a capacidade do réu de conduzir sua vida seria impedida pelo medo de nova exposição à vergonha, ao custo e ao suplício do processo. Assim, a garantia protege o interesse do acusado à tranquilidade, ou seu interesse em poder, de uma vez por todas, concluir seu confronto com a sociedade” (BURTON, Donald Eric. A closer look at the Supreme Court and the double jeopardy clause. Ohio State Law Journal, Columbus, v. 49, n. 3, 1988, p. 803, tradução direta). (4) “o ne bis in idem somente poderia ser cumprido quando baseado na ideia de limitação do poder estatal. Isso porque, para cada ato delituoso não pode ser dada mais do que uma resposta. Do contrário, o homem seria submetido a uma situação jurídica indefinida, indigna com a condição humana […]. E, nos tempos presentes, sob o signo dos valores edificantes dos Estados Democráticos de Direito, tal desiderato já não se coaduna com a necessária tutela jurídica da liberdade dos indivíduos que estão sob o ius persequendi estatal”. (SABOYA, Keity. Ne Bis in Idem: história, teoria e perspectivas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, pp. 163-164). (5) Além disso, o risco de condenações errôneas, em virtude da inobservância deste princípio, é uma preocupação prática relevante, por “diminuir a capacidade do réu de se defender, não apenas em razão dos crescentes custos da litigância, mas também porque cada julgamento dá à acusação uma oportunidade de prever e se ajustar à estratégia defensiva” (HESSICK, Carissa Byrne; HESSICK, F. Andrew. Double jeopardy as a limit on punishment. Cornell Law Review, Ithaca, v. 97, n. 1, 2011, p. 59, tradução direta). (6) Realmente, é indubitável “a incidência da regra do ne bis in idem nas hipóteses em que distintas justiças - no plano internacional e no plano interno de um Estado - se ocupam do mesmo comportamento ilícito.” (CRUZ, ob. cit., p. 221; grifou-se). (7) “é importante realçar, ainda, que, embora, eventualmente, existam entre as diversas imputações diferenças de tempo, de lugar, de modo de execução, ou mesmo do objeto do fato imputado, é possível a subsistência da identidade nuclear do fato, devendo, para tanto, ser analisado o acontecimento singularmente ocorrido. […]. Além do mais, não se há de esquecer que, como estabelecido desde os romanos, os fatos imputados no processo compreendem o deduzido, assim como o dedutível. Com efeito, a resolução do caso penal, com a prolação de decisão definitiva, põe termo ao conteúdo da pretensão processual penal, em sua totalidade, estendendo-se a proibição de renovação da demanda não apenas sobre a ‘porção do fato’ descrito no processo, mas sobre todo o fato, ainda que tenha havido deficiência na imputação. Assim, […], sustenta-se que a proibição (ne) de imposição de mais de uma (bis) consequência jurídico-repressiva pela prática dos mesmos fatos (idem) ocorre, ainda, quando o comportamento definido espaço-temporalmente imputado ao acusado não foi trazido por inteiro para apreciação do juízo. Isso porque o objeto do processo eì informado pelo princípio da consunção, pelo qual tudo aquilo que poderia ter sido imputado ao acusado, em referência a dada situação histórica, e não o foi, jamais poderá vir a se^-lo novamente. E também se orienta pelos princípios da unidade e da indivisibilidade, devendo o caso penal ser conhecido e julgado na sua totalidade - unitária e indivisivelmente - e, mesmo quando não o tenha sido, considerar-se-á irrepetivelmente decidido”. (SABOYA, ob. cit., pp. 180-181). (8) “manifesta prevalência do sopesamento dos fatos, e não dos conceitos normativos dos crimes, como critério para a identificação de duas ações penais, conforme se depreende da leitura dos julgados que indica, a saber: Recurso de HC 52.959, 1ª Turma, unânime, Rel. Min. Bilac Pinto, DJ de 21/3/75; Recurso Criminal 1.299, 1ª Turma, unânime, Rel. Min. Rodrigues Alckmin, DJ de 25/11/77; Recurso de HC 62.715-3, 1ª Turma, unânime, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ de 29/11/85; Recurso de HC 63.989-4, 1ª Turma, unânime, Rel. Min. Octavio Gallotti, DJ de 1/8/86; Recurso de HC 66.317-6, 2ª Turma, unânime, Rel. Min. Aldir Passarinho, DJ de 1/7/88; HC 71.125-1, 1ª Turma, unânime, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ de 9/9/94; HC 74.171-1, 1ª Turma, unânime, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 20/8/96; HC 76.550-1, 1ª Turma, unânime, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ de 18/9/98; HC 76.852-8, 1ª Turma, unânime, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ de 10/3/2000.” (CRUZ, ob. cit., pp. 107-108. O trabalho por ele referenciado, de MAIA, Rodolfo Tigre, é O princípio do bis in idem e a Constituição Brasileira de 1988. Boletim Científico da Escola Superior do Ministério Público da União, ano 4, n. 16, pp. 11-75, jul./set.2005). (9) Quanto aos demais acusados, os quais não integraram o feito criminal eleitoral, poder-se-ia pensar que, como não foram julgados pela sentença respectiva (e considerando a divisibilidade das ações penais públicas), seria cabível a restauração da decisão do juiz de primeiro grau que, na Justiça Comum Estadual, recebeu a denúncia em seu desfavor. Afinal, a vedação à dupla incriminação tem seus limites subjetivos, pois “caso determinado acusado seja absolvido em virtude da ausência de provas, isso não significa que outro coautor ou partícipe não possa ser julgado posteriormente pela mesma imputação” (LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. 8. ed. Salvador: JusPodivm, 2020, p. 1.231). Legislação Constituição Federal, arts. 5º, XXXVI, e § 2º, e 127, § 1º Convenção Americana de Direitos Humanos, art. 8º, n. 4 Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, art. 14, n. 7 Código Penal, art. 288 Lei n. 9.613/1998, art. 1º Código de Processo Penal, arts. 78, IV, e 580 do CPP Código Eleitoral, art. 350 Código de Processo Civil/2015, art. 282, § 2º