Art. 229-C da Lei 9.279/1996
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2021
25/08 - REsp 1.543.826-RJ
Em se tratando de pedido de patente de fármacos, compete à Anvisa analisar - previamente à análise do INPI - quaisquer aspectos dos produtos ou processos farmacêuticos - ainda que extraídos dos requisitos de patenteabilidade (novidade, atividade inventiva e aplicação industrial) - que lhe permitam inferir se a outorga de direito de exclusividade (de produção, uso, comercialização, importação ou licenciamento) poderá ensejar situação atentatória à saúde pública. Informações do Inteiro Teor A controvérsia diz respeito aos “limites da análise” a ser efetuada pela agência reguladora para fins da anuência prévia imposta pelo artigo 229-C da Lei de Propriedade Industrial, ou seja: deve ficar adstrita a certificar se os produtos ou os processos farmacêuticos - objetos do pedido de patente - apresentam ou não potencial risco à saúde ou lhe é permitido adentrar os requisitos de patenteabilidade - novidade, atividade inventiva e aplicação industrial -, cuja análise técnica, em linha de princípio, compete ao INPI. Nos termos do artigo 6º da Lei da Anvisa, sua finalidade institucional consiste em promover a proteção da saúde da população, por intermédio do controle sanitário da produção e da comercialização de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária, inclusive dos ambientes, dos processos, dos insumos e das tecnologias a eles relacionados, bem como o controle de portos, aeroportos e de fronteiras. Entre outras competências previstas no artigo 7º da lei, destaca-se a voltada à correção de falhas de mercado do setor de fármacos, mediante o monitoramento da evolução dos preços de medicamentos, podendo a agência reguladora, para tanto, requisitar informações, proceder ao exame de estoques ou convocar os responsáveis para explicarem conduta indicativa de infração à ordem econômica, tais como a imposição de preços excessivos ou aumentos injustificados (inciso XXV). O relevante papel desempenhado pela Anvisa na esfera da regulação econômico-social do setor extrai-se, ainda, do fato de exercer a Secretaria-Executiva da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), órgão interministerial criado pela Lei n. 10.742/2003 - integrado pelos Ministros da Saúde, da Casa Civil, da Fazenda, da Justiça e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior - e que tem por objetivos a adoção, a implementação e a coordenação de atividades destinadas a promover a assistência farmacêutica à população, por meio de mecanismos que estimulem a oferta dos produtos e a competitividade entre os fornecedores. Assim, conquanto não se possa descurar das atribuições legais do INPI - principalmente a execução, no âmbito nacional, de normas que regulam a propriedade industrial, tendo em vista a sua função social, econômica, jurídica e técnica -, em relação às patentes de fármacos, não há falar em invasão institucional por parte da Anvisa, quando a recusa da anuência prévia estiver fundamentada em qualquer critério demonstrativo do impacto prejudicial da concessão do privilégio às políticas de saúde pública, que abrangem a garantia de acesso universal à assistência farmacêutica integral. Isso porque a diferença das perspectivas de análise das referidas autarquias federais sobre o pedido de outorga de patente farmacêutica afasta qualquer conflito de atribuições. Com efeito, é certo que o INPI, vinculado atualmente ao Ministério da Economia, tem por objetivo garantir a proteção eficiente da propriedade industrial e, nesse mister, parte de critérios fundamentalmente técnicos, amparados em toda a sua expertise na área, para avaliar os pedidos de patente, cujo ato de concessão consubstancia ato administrativo de discricionariedade vinculada aos parâmetros abstratos e tecnológicos constantes da lei de regência e de seus normativos internos. Por outro lado, a Anvisa, detentora de conhecimento especializado no setor de saúde, no exercício do “ato de anuência prévia”, deve adentrar quaisquer aspectos dos produtos ou processos farmacêuticos - ainda que extraídos dos requisitos de patenteabilidade (novidade, atividade inventiva e aplicação industrial) - que lhe permitam inferir se a outorga do direito de exclusividade representará potencial prejuízo às políticas públicas do SUS voltadas a garantir a assistência farmacêutica à população. A atuação da agência reguladora, no caso, traduz, marcadamente, uma função redistributiva, na qual se procura conciliar o interesse privado - direito de exclusividade da exploração lucrativa da invenção - com as metas e os objetivos de interesses públicos encartados nas políticas de saúde. A tese ora proposta, portanto, decorre da interpretação sistemática das normas contidas no inciso I do artigo 18 da Lei de Propriedade industrial - proibição de outorga de patentes a invenções contrárias à saúde pública - e nas Leis n. 9.782/1999 e 10.742/2003, que delineiam as funções institucionais e as competências expressamente atribuídas à Anvisa no sentido de resguardar a viabilidade das políticas de saúde consideradas “de relevância pública” pela Constituição de 1988. Nessa perspectiva, a estipulação da “anuência prévia” da autarquia especial, como condição para a concessão da patente farmacêutica, tem por base o seu papel de regulação econômico-social - ou socioeconômica - do setor de medicamentos, que se justifica pelos mandamentos extraídos da Carta Magna, no sentido da necessária harmonização do direito à propriedade industrial com os princípios da função social, da livre concorrência e da defesa do consumidor, assim como o interesse social encartado no dever do Estado de, observada a cláusula de reserva do possível, conferir concretude ao direito social fundamental à saúde (artigos 5º, incisos XXIII, XXIX, 6º, 170, incisos III, IV e V, e 196). Em acréscimo, ressalta-se que, à luz da norma legal analisada (artigo 229-C da Lei n. 9.279/1996), a exigência de anuência prévia da Anvisa constitui pressuposto de validade da concessão de patente de produto ou processo farmacêutico - o que, por óbvio, decorre da extrema relevância dos medicamentos para a garantia do acesso universal à assistência integral à saúde -, não podendo, assim, o parecer negativo, em casos nos quais demonstrada a contrariedade às políticas de saúde pública, ser adotado apenas como subsídio à tomada de decisão do INPI. O caráter vinculativo da recusa de anuência é, portanto, indubitável. Nada obstante, eventual divergência entre as autarquias sobre os fundamentos exarados no parecer desfavorável à pretensão patentária, deve ser dirimida sob uma ótica dialética e cooperativa - recomendável no âmbito da Administração Pública -, em que busquem equacionar “o propósito de estímulo da atividade inventiva conducente ao desenvolvimento tecnológico e econômico do País” e “o interesse social de concretização do direito fundamental à saúde objeto das políticas públicas do SUS”. Informações Adicionais Doutrina (1) O aspecto patrimonial do direito de propriedade industrial, ressoa inequívoco que o seu exercício encontra-se subordinado ao atendimento da função social e à diretriz de compatibilização do objetivo de estímulo ao desenvolvimento tecnológico e econômico nacional com o interesse social, que, no dizer de Rodolfo de Camargo Mancuso, “reflete o que a sociedade entende por ‘bem comum’; o anseio de proteção à res publica; a tutela daqueles valores e bens mais elevados, os quais essa sociedade, espontaneamente, escolheu como sendo os mais relevantes” (MANCUSO, Rodolfo Camargo. Interesses difusos [livro eletrônico]: conceito e legitimação para agir. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, Item 1.4). Legislação Constituição Federal, art. 3º, art. 5º, XXIII e XXIX, art. 6º; Constituição Federal, art. 170, III, IV e V , art. 196, art. 197, art. 198, art. 200, II; Lei n. 9.279/1996, art. 7º, IX; Lei n. 9.279/1996, art. 8º; Lei n. 9.279/1996, art. 18; Lei n. 9.279/1996, art. 229-C; Lei n. 9.279/1996, art. 230, § 3º; Lei n. 5.772/1971, art. 9º; Lei n. 6.360/1976, artigos 16 a 24-B; Lei n. 8.080/1990, art. 6º; Lei n. 8.080/1990, art. 7º; Lei n. 8.080/1990, art. 19-M; Lei n. 13.848/2019, art. 25; Lei n. 13.848/2019, art. 31; Lei n. 12.529/2011; Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro - LINDB -, art. 20; Acordo TRIPS, art. 27.2.