Violação do sigilo profissional
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2021
17/11 - RMS 67.105-SP
Decisão judicial que determina a apresentação do contrato de serviços advocatícios, com a finalidade de verificação do endereço do cliente/executado, fere o direito à inviolabilidade e sigilo profissional da advocacia. Informações do Inteiro Teor A advocacia é função essencial à administração da Justiça, reconhecida como tal no caput do art. 133 da CF/1988. A legítima exegese desse dispositivo constitucional é a que reconhece proteção ao exercício da advocacia e não ao advogado e, assim, a essencialidade própria do advogado se revela apenas “no contexto de aplicação do ordenamento jurídico, em atividade vinculada ao órgão jurisdicional atuando na reconstrução, e mais, na ressemantização democrática e participada das normas jurídicas aplicáveis ao caso concreto”. Ademais, a garantia do sigilo profissional tem assento no art. 5º, inciso XIV, da CF/1988, que estabelece ser “assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”. O art. 7º, inciso II, do Estatuto da Advocacia, determina a inviolabilidade do escritório ou local de trabalho, bem como dos arquivos, dados, correspondências e comunicações, salvo hipótese de busca ou apreensão. E sobre o ponto, acrescenta a doutrina que “ainda que determinadas por ordem judicial, as interceptações telefônicas, previstas no art. 5º, inciso XI, da CF/1988, não podem violar direito à confidencialidade da comunicação entre advogado e cliente”. Deve ser realçado, nesse ponto, pela relevância, que a redação do referido inciso II é fruto de alteração legislativa promovida pela Lei n. 11.767/2008. A partir da renovação operada por essa lei, o § 6º, do próprio art. 7°, regulamentou a ressalva prevista naquele inciso, detalhando melhor a matéria, prevendo expressamente as hipóteses em que a inviolabilidade poderia ser afastada. De fato, anteriormente à publicação da Lei n. 11.767/2008, a doutrina entendia que o afastamento da inviolabilidade e realização de busca e apreensão em locais de trabalho do advogado somente era possível, desde que acompanhada por representante da OAB. Entretanto, após a entrada em vigor da nova lei, para que seja removida a prerrogativa é necessário o preenchimento de certos requisitos: a) indícios de autoria e materialidade de crime praticado pelo próprio advogado; b) decretação da quebra da inviolabilidade por autoridade judiciária competente; c) decisão fundamentada de busca e apreensão que especifique o objeto da medida. Aliás, pela mesma distinção, recorde-se que o sigilo profissional recebe amparo no Código Penal brasileiro (art. 154) e no Código de Processo Penal (art. 207), no sentido de que, em qualquer investigação que viole o sigilo entre o advogado e o cliente, viola-se não somente a intimidade dos profissionais envolvidos, mas o próprio direito de defesa e, em última análise, a democracia. Noutro ponto, é conveniente assinalar que, como qualquer outro direito ou garantia fundamental, também a inviolabilidade e o sigilo profissional no âmbito do exercício da advocacia, mesmo ostentando tamanha envergadura, não são absolutos em prevalência, tendo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça exercido importante papel na definição das hipóteses em que é possível flexibilizar seu alcance, a partir de legítima e desejada ponderação de valores. No caso, a determinação para apresentação do contrato de serviços advocatícios com a finalidade de localização do executado/cliente para expedição de mandado de penhora não configura justa causa para a suspensão das garantias constitucionalmente previstas. Assim, o contrato de prestação de serviços advocatícios, instrumento essencialmente produzido e referente à relação advogado/cliente, está sob a guarda do sigilo profissional, assim como se comunica a inviolabilidade da atividade advocatícia. Informações Adicionais Doutrina (1) “o direito de recorrer, conferido ao estranho ao processo, justifica-se pelo reconhecimento da legitimidade do seu interesse em evitar efeitos reflexos da sentença sobre relações interdependentes, ou seja, relações que, embora não deduzidas no processo, dependam do resultado favorável do litígio em prol de um dos litigantes” (Humberto Theodoro Júnior, in Curso de Direito Processual Civil. V. III. 48. ed. rev., atual.e ampl. Rio de Janeiro: Forense, p. 986). (2) “ao recorrer, o terceiro não pode pleitear nada para si, porque ação não exerce. O seu pedido se limita à lide primitiva e a pretender a procedência ou improcedência da ação como posta originalmente entre as partes” (Vicente Greco Filho, in Da intervenção de terceiros. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 103). (3) a advocacia é função essencial à administração da Justiça, reconhecida como tal no caput do art. 133 da CF/1988. Destaque-se, que a atual Constituição foi a primeira Carta do país a atribuir à advocacia status constitucional, declarando expressamente sua indispensabilidade perante a Justiça e sua atuação sem óbices, na busca da realização do Estado Democrático de Direito (PANSIERI in CANOTILHO. et al, 2013, p. 3061). (4) a legítima exegese do dispositivo constitucional é a que reconhece proteção ao exercício da advocacia e não ao advogado. Assim, a essencialidade própria do advogado se revela apenas “no contexto de aplicação do ordenamento jurídico, em atividade vinculada ao órgão jurisdicional atuando na reconstrução, e mais, na ressemantização democrática e participada das normas jurídicas aplicáveis ao caso concreto” (TOLENTINO, Lucas Augusto Pontes. Princípio constitucional da ampla defesa, direito fundamental ao advogado e Estado de Direito Democrático: da obrigatoriedade de participação do advogado para o adequado exercício da defesa de direitos. Dissertação (Mestrado em Direito Processual) ? Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Faculdade Católica de Minas Gerais, 2007, p. 40). (5) As prerrogativas, por sua vez, rejeitam o arbítrio. Além de não constituírem regalias, buscam munir determinados sujeitos de instrumentos úteis à neutralização de privilégios estruturais, que, de outro modo, se sobreporiam ao espírito da justiça. A natureza das prerrogativas é, portanto, inconciliável com as razões ilegítimas e antidemocráticas que subjazem aos privilégios, geralmente autoconcedidos ou instituídos em favor de segmentos detentores dos espaços de poder. (A imunidade material do advogado como corolário dos direitos da cidadania. Tese (Doutorado em Ciências Criminais) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2018, p. 93). (6) A atuação do advogado, longe do interesse corporativo, é necessária para a interpretação do direito que o cidadão comum desconhece, considerando-se a natureza técnica, notadamente as processuais, das normas jurídicas, tendo sido inovação constitucional bem inserida, no escopo de aperfeiçoamento da prestação jurisdicional (Rui Celso Reali Fragoso, in A indispensabilidade e a inviolabilidade no exercício da advocacia. Disponível:https://www.migalhas.com.br/depeso/302765/a-indispensabilidade-e-a-inviolabilidad e-no-exercicio-da-advocacia). (7) O equívoco de imaginar-se um privilégio corporativo, o que, “na verdade, é uma proteção ao cliente que confia a ele documentos e confissões da esfera íntima, de natureza conflitiva e não raro objeto de reivindicação e até de agressiva” (José Afonso da Silva, in Curso de Direito Constitucional Positivo. 5. ed. São Paulo: RT, 1989, p. 504). (8) “a advocacia, enquanto função essencial da Justiça, por definição constitucional, não sobrevive se não for a certeza de que o sigilo profissional representa a base sobre a qual se sustenta seu exercício” (Walter Ceneviva, in Segredos Profissionais). (9) “ainda que determinadas por ordem judicial, as interceptações telefônicas, previstas no art. 5º, inciso XI, da CF/1988, não podem violar direito à confidencialidade da comunicação entre advogado e cliente” (Felipe Santa Cruz, in O acesso à Justiça e a defesa das prerrogativas da advocacia brasileira na jurisprudência do STJ. Disponível: https://www.migalhas.com.br/depeso/303060/o-acesso-a-justica-e-a-defesa-das-prerrogativas -da-advocacia-brasileira-na-jurisprudencia-do-stj). (10) após a entrada em vigor da nova Lei n. 11.767/2008, para que seja removida a prerrogativa é necessário o preenchimento de certos requisitos: a) indícios de autoria e materialidade de crime praticado pelo próprio advogado; b) decretação da quebra da inviolabilidade por autoridade judiciária competente; c) decisão fundamentada de busca e apreensão que especifique o objeto da medida (GOMES, Luiz Flávio. Lei n. 11.767/08: garante a inviolabilidade do local, instrumentos de trabalho e correspondência do advogado. Disponível: https://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/92461/lei-n-11767-08-garante-a-inviolabilidade-do-local-inst rumentos-de-trabalho-e-correspondencia-do-advogado). (11) sobre o sigilo profissional, como prerrogativa do exercício da advocacia, merece ser referência o caráter personalíssimo ou intuitu personae que reveste a relação contratual existente entre o profissional habilitado e seu cliente, baseada na confiança depositada reciprocamente. Bem por isso que o contrato de prestação de serviços advocatícios, típico contrato de mandato, nos termos do art. 683 do Código Civil, pode ser revogado ou renunciado, a qualquer tempo. “Até porque, como confiança não se tem pela metade, havendo algum abalo na fidúcia recíproca, qualquer das partes pode promover a resilição unilateral, permitida pela natureza do negócio” (FARIAS, Cristiano Chaves de; NETTO, Felipe Braga; ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil. Volume único. 5. ed. rev., ampl. e atual., Salvador: JusPodivm, 2020, p. 907). (12) De fato, a confiança pública de que necessitam os profissionais da advocacia se deve também transmitir aos seus arquivos, pudessem estes ser livremente vasculhados, os clientes temeriam confiar aos seus patronos as peças convenientes ao tratamento dos casos, e tais patronos se veriam tolhidos na liberdade de exercerem com eficiência os próprios encargos. (João Bernardino Gonzaga, in Violação de segredo profissional. São Paulo: Max Limonad, 1976, p. 99) (13) “todas as medidas preventivas, repressivas ou instrutórias que invadam a esfera privada ou impliquem em restrições ao exercício de direitos de quaisquer pessoas devem ser adotadas sob estrito controle judicial da sua legalidade, necessidade, proporcionalidade com a gravidade da infração e adequação”, conforme bem colocada lição de Leonardo Greco (Garantias fundamentais do processo: o processo justo. In: Os princípios da Constituição de 1988. 2. ed. Manoel Messias Peixinho, Isabella Franco Guerra e Firly Nascimento Filho (org.). Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 404). Legislação Constituição Federal, art. 5º, XI e XIV; Constituição Federal, art. 133; Lei n. 8.906/1994, art. 7º, II; Lei n. 12.016/2009, art. 5º, II; Lei n. 11.767/2008, art. 7º, § 6º; Código Penal, art. 154; Código de Processo Penal, art. 207; Lei n. 11.767/2008; Código de Processo Civil de 1973, art. 522. Súmulas Súmula n. 202/STJ Precedentes Qualificados STF. Pleno. ADI 1.127; rel. p/ acd. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 17/05/2006; DJe 11/06/2010.